Waldecir Gonzaga - Marcela Machado Vianna Torres
yachay Año 39, nº 76, 2022, p. 161-202
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YACHAY ADHIERE A UNA LICENCIA CREATIVE
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INTERNATIONAL – (CC BY-NC 4.0)
BY NC
cc
DOI: 10.35319/yachay.20227651
Raab, a meretriz: mulher de fé (Hb 11,31)
e de boas obras (Tg 2,24-25)
Rahab, la ramera: mujer de fe (Heb 11,31)
y de buenas obras (Sant 2,24-25)
Rahab, the prostitute: woman of faith (Heb 11,31)
and of good works (Jas 2,24-25)
Waldecir Gonzaga1
Marcela Machado Vianna Torres2
Resumo
No presente artigo, estuda-se o motivo pelo qual Raab, uma mulher
cananeia, prostituta, torna-se uma personagem importante para a
história da salvação. No Antigo Testamento, ela aparece no livro de
Josué. No Novo Testamento, figura no Evangelho de Mateus, na Carta
aos Hebreus e na carta de Tiago. Debruçase sobre os textos bíblicos
de Js 2,1-22 e 6,17-25, analisando sua atitude para com os espiões
1 Doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, Itália.
Pós-doutorado sobre o Cânon Bíblico, pela FAJE, Belo Horizonte, Brasil. Diretor e
Professor de Teologia Bíblica do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Criador
e líder do Grupo de Pesquisa de Análise Retórica Bíblica Semítica, constante no
Diretório do CNPq. E-mail: waldecir@hotmail.com e waldecir@puc-rio.br. Currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9171678019364477 e ORCID ID: https://orcid.org/0000-
0001-5929-382X.
2 Mestranda em Teologia Bíblica junto à mesma Universidade. Bacharel em
Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Membro do
Grupo de Pesquisa de Análise Retórica Bíblica Semítica, constante no Diretório
do CNPq. E-mail: marcelamvtorres@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.
cnpq.br/9630383223180390 e ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-1922-3613.
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hebreus no livro de Josué, no episódio da invasão à cidade de Jericó
e na ocupação do território de Canaã. A fé de Raab revela que Deus
perdoa e acolhe os que nele creem e, também, salva os condenados
quando estes se convertem. Analisa-se Hb 11,31, em seu contexto,
o qual exalta a fé dos antepassados. Raab aparece mencionada entre
as figuras proeminentes de Israel por causa de sua fé em YHWH e
sua atitude para com os espiões hebreus. Em seguida, estuda-se a
perícope de Tg 2,2425, que afirma que Raab foi uma mulher de fé
e ação: ela agiu em favor dos espiões porque acreditou em YHWH.
Ao longo do estudo, busca-se ver os motivos que levaram Raab, a
meretriz (Hb 11,31 e Tg 2,25), a ser considerada como uma mulher
de fé e boas obras. Ela é personagem memorável e louvada na história
da salvação, mencionada, inclusive, na genealogia de Cristo (Mt 1,5).
Palavras chave
Raab – mulher – prostituta – fé – obras – salvação
Resumen
En este artículo estudiamos el motivo por el cual Rajab, una mujer
cananea, prostituta, se convierte en un personaje importante en la
historia de la salvación. En el Antiguo Testamento, aparece en el
libro de Josué. En el Nuevo Testamento, aparece en el Evangelio de
Mateo, la Carta a los Hebreos y la Carta de Santiago. Se centra en el
texto bíblico de Jos 2,1-22 y 6,17-25, analizando su actitud frente a
los espías hebreos en el libro de Josué, en el episodio de la invasión
de la ciudad de Jericó y en la ocupación del territorio de Canaán.
La fe de Rajab revelará que Dios perdona y acoge a los que creen
en él y también salva a los condenados cuando se convierten. Se
analiza Heb 11,31 en su contexto, que exalta la fe de los antepasados.
Rajab es mencionada entre las figuras prominentes de Israel por su
fe en YHWH y su actitud hacia los espías hebreos. A continuación,
estudiamos la perícopa de Santiago 2,2425, que afirma que Rajab
fue una mujer de fe y acción: actuó a favor de los espías porque
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creyó en YHWH. A lo largo de nuestro estudio, buscamos ver las
razones que llevaron a Rajab a ser considerada una mujer de fe y
buenas obras. Es un personaje memorable y alabado en la historia de
la salvación, mencionado inclusa en la genealogía de Cristo (Mt 1,5).
Palabras clave
Rajab – mujer – prostituta – fe – obras – salvación
Abstract
In this article we will study the reason why Rahab, a Canaanite
woman, a prostitute, becomes an important personality in the history
of salvation. In the Old Testament, she appears in the book of Joshua.
In the New Testament, she appears in the Gospel of Matthew, the
Letter to the Hebrews and the Letter of James. We will focus on the
text of Jos 2:1-22; 6:17-25, analyzing its attitude towards the Hebrew
spies in the episode of the invasion of the city of Jericho and the
occupation of the territory of Canaan. Rahab’s faith will reveal that
God forgives and welcomes those who believe in him and saves the
condemned when they are converted. We will analyze Heb 11:31,
which extols the faith of the ancestors. Rahab is numbered among the
prominent figures of Israel because of her faith in the God of Israel
and her attitude toward the Hebrew spies. We will study Jas 2:24-25,
which states that Rahab was a woman of faith and action: she acted
in favor of the spies because she believed in YHWH. Throughout
our study, we will seek the reasons that led Rahab to be considered
a woman of faith and good works. She is a memorable and praised
character in salvation history, and is mentioned in the genealogy of
Christ (Mt 1:5).
Keywords
Rahab – woman – prostitute – faith – works – salvation
Rahab, la ramera: mujer de fe (Heb 11,31) y de buenas obras (Sant 2,24-25)
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Introdução
Segundo os textos bíblicos, Raab é uma prostituta cananeia
que aparece no livro de Josué como uma personagem que
ajudou os espiões hebreus a se esconderem dos vassalos do
rei cananeu. Eles haviam penetrado no território de Jericó
para estudar como poderiam invadir a cidade. Raab lhes deu
cobertura, pois havia escutado as maravilhas do Deus dos
hebreus e sabia que aquela terra era destinada a eles. Em troca
de abrigo e silêncio diante das autoridades, Raab negociou
a segurança de sua família após a ocupação dos hebreus. De
acordo com o comentário de Josefo ao livro de Josué, o nome
de Raab chegou, através dos espiões, aos ouvidos de Josué e do
sumo sacerdote Eleazar que concordaram em proteger Raab e
os seus. Segundo Josefo, a prostituta e sua família receberam
terras e conviveram amistosamente com os hebreus. Raab
e sua família foram os únicos cananeus poupados do ataque
a Jericó3. Tanto o autor da carta de Tiago (Tg 2,25) como o
autor da carta aos Hebreus (Hb 11,31) vão se referir à Raab
como prostituta/meretriz, “sem rodeios”4, seguindo o livro de
Josué, que também não esconde o fato (Js 2,1; 6,17.22.25)5. Na
Genealogia de Jesus Cristo, em Mt 1,3.5, Raab está associada a
outras mulheres do Antigo Testamento, a Tamar e a Rute6.
3 Cf. F. JoseFo, História dos Hebreus, Rio de Janeiro 2015, 240.
4 S. kistemaker, Tiago e Epístolas de João. Comentário do Novo Testamento, São
Paulo 2006, 479.
5 Cf. H. C. S. utrini, “Raab, a meretriz: desdobramentos e releituras do texto de Js
2,1-21; 6,22-25”, en ReBiblica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5 (jan./jun. 2022) 50-51.
6 Cf. C. spiCq, L’Épitre aux Hébreux. II. Commentaire, Paris 1952, 361; H. C. S.
utrini, “Raab, a meretriz: desdobramentos e releituras do texto de Js 2,1-21; 6,22-
25”, en ReBiblica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5 (jan./jun. 2022) 52-55.
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Conforme o texto da genealogia de Cristo, em Mt 1,5, Raab
casouse com Salmon e de sua união nasceu Boaz, personagem
bíblico presente no livro de Rute e seu esposo. Segundo o
mesmo texto bíblico, Rute, bisavó do rei Davi, é ancestral de
Jesus, nora de Raab7.
Raab acreditou nos relatos que ouvira sobre o Deus de
Israel. Ela confiou que YHWH era o único Deus na terra e
nos céus e, por isso, ajudou os hebreus. Isto mostra que Deus
guarda sempre uma surpresa além do que foi prometido para
aqueles que confiam nele sem exigir provas (Hb 11,3940).
Raab considera que o Deus de Israel está em toda parte,
que o Deus dos hebreus era o Deus na terra e nos céus. Tanto
os cristãos quanto os judeus aceitam que Raab possibilitou que
os hebreus conquistassem a Terra Prometida por confiar na
promessa de YHWH de que aquela terra era destinada a seu
povo, participando ativamente na história da salvação.
Seu nome também aparece em Tg 2,24-25. Este texto atribui
o resgate de Raab a suas obras, pois Tiago deseja enfatizar que
a justificação não vem somente pela fé, isenta de obras, mas
igualmente pede boas obras8: é necessário agir de acordo com a
Palavra de Deus. Raab é citada ao lado de Abraão, e, com isso,
Tiago “introduz um paralelo para o exemplo de Abraão”9, ao
colocá-la como exemplum de fé e boas obras, modelo de vida
de crente realmente convertido10.
7 Cf. S. kistemaker, Tiago e Epístolas de João. Comentário do Novo Testamento,
São Paulo 2006, 481.
8 Cf. M. dibelius, A commentary on the Epistle of James, Philadelphia 1996, 166.
9 Ibid., 166.
10 L. T. Johnson, The Letter of James: a new translation with introduction and
commentary, New York 1995, 245.
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1. Raab em Josué
O autor do livro é identificado no primeiro versículo: “...
Josué, filho de Nun, servo de Moisés” (1,1), da tribo de Efraim.
O nome dado por seus pais foi Oséias, comum na tribo (2Rs
17,1; 1Cr 27,20; Os 1,1) e significa salvação (Nm 13,9). Mais
tarde Moisés o mudou para Josué, que significa “YHWH é
salvação” (Nm 13,16). Seu pai, Nun, neto de Elisama, era chefe
da tribo de Efraim (1Cr 7,27; Nm 1,10)11.
O livro de Josué é o primeiro livro da segunda grande
divisão da Bíblia hebraica, encabeça o livro dos Profetas
anteriores e trata da ocupação da Terra Prometida sob a
liderança de Josué. Ele era lugartenente de Moisés, corajoso
e experiente guerreiro12. Escolhido por Deus para suceder a
Moisés, Josué deveria ser forte e corajoso para conquistar a
terra de Canaã, sempre observando a lei de Moisés. No livro de
Josué há grande ênfase na fidelidade à lei mosaica. A história da
conquista foi relida à sombra da Torá13. Os israelitas iniciaram
a ocupação pela cidade de Jericó.
Raab aparece pela primeira vez na Sagrada Escritura no
capítulo 2 do livro de Josué. O nome (rāhāb) possivelmente
está relacionado à raiz rhb, que significa largura14. A presença
da prostituta Raab, a missão dos espiões e seus desdobramentos
são os temas mais importantes do capítulo. Em 2,1, Josué
envia dois espiões a Jericó. Nos vv.2-8, é apresentada a casa
de Raab; a confissão de fé e o pedido de Raab aos espiões
11 Cf. S. pérez millos, Comentario al libro de Josué, Barcelona 2020, 45.
12 Cf. M. J. Cohen, Caminhos da Bíblia, Rio de Janeiro 1967, 89.
13 Cf. J. L. ska, O Antigo Testamento, São Paulo 2015, 71-72.
14 Cf. S. pérez millos, Comentario al libro de Josué, Barcelona 2020, 214.
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são apresentados em 2,913; o juramento dos espiões à Raab
localiza-se em 2,14-21, e a volta dos espiões aparece em 2,22-
2415. O relato termina em Js 6,17.2225, com a narração de
que Israel realmente poupou Raab e sua família, conforme
acordado com os espiões16.
Ao descrever o capítulo 2 do livro de Josué, Josefo afirma
que somente Raab se salva com os seus na tomada de Jericó,
porque ela escondeu os espiões hebreus dos homens do soberano
de seu povo17. Ele relata que Raab diz aos espiões hebreus que
Deus lhe revelara que eles se tornariam senhores de todo o país
de Canaã. Ela negocia com eles a segurança de sua família em
troca de esconderijo e ajuda para fugir dos invasores hebreus.
Josefo escreve que os espiões contaram sobre Raab para Josué
e este narrou o episódio a Eleazar, sumo sacerdote, e ao Senado,
e eles aprovaram e confirmaram a promessa feita a Raab18.
Quanto ao comentário do capítulo 6, Josefo escreve que Raab e
seus parentes foram preservados e que ela foi levada até Josué,
que agradeceu sua atitude para com os espiões hebreus e lhe
recompensou com terras e tratamento cordial19.
De acordo com Grindel, os livros de Josué, Juízes, Samuel
e Reis possuem estilo literário e teologia semelhantes ao livro
do Deuteronômio, que seria uma introdução a esse conjunto de
livros. Estes quatro livros compõem a História Deuteronomista,
que narra desde a conquista de Canaã, em XII a.C., até o Exílio
no século VI a.C. Segundo o referido autor, Martin Noth afirma
15 Cf. R. hess, Josué, São Paulo 2008, 74-87.
16 Cf. G. CroCetti, Josué, Juízes e Rute, São Paulo 1985, 50.
17 Cf. F. JoseFo, História dos Hebreus, Rio de Janeiro 2015, 240.
18 Cf. ibid., 238.
19 Cf. ibid., 240.
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que a redação da História Deuteronomista se dá na época do
Exílio, em 550 a.C. Há, no entanto, estudos que sugerem que
a redação se deu em duas edições. A primeira e mais primitiva
teria sido escrita durante o governo de Josias (620-609 a.C.), e
a segunda compilada no Exílio (século VI a.C.)20.
A narrativa de Js 2,1-24 difere totalmente dos capítulos 1
e 3 e denota que esta é uma inserção tardia à narrativa. Para
o autor, a história de Raab era muito antiga: na sua forma
original seria um conto etiológico. A antiga história de Raab foi
enxertada pela mão deuteronomista (D) conforme a encontrou,
com exceção da profissão de fé de Raab (Js 2,911), para dar
esperança aos exilados: Deus agiu assim no passado e fará o
mesmo no Exílio21. Crocetti argumenta que, mais do que uma
etiologia do “clã de Raab”, Js 2 é uma explicação referente à
tomada de Jericó”22. Morton afirma:
O episódio de Raab (2,1-24) parece ter constituído uma
unidade estrutural antes de ser incorporado na história
deuteronômica. No âmago da narrativa antiga havia a
confissão de fé de Raab, que, mesmo em sua forma pré
deuteronômica, expressa a convicção de que era Deus quem
estava dando a vitória a Israel e causando pânico e desalento
entre os inimigos de Israel (v.9). O editor deuteronômico do
trecho parece ter percebido um significado mais profundo
na confissão de Raab, ou seja, que a sua continuação na
terra estava intimamente relacionada com sua fé. Por
conseguinte, ele suplementou sua confissão abreviada dos
atos salvíficos de Deus na História (v.10) com uma fórmula
20 Cf. J. A. Grindel, “Josué”, en berGant Dianne – karris Robert J. (orgs), Comentário
Bíblico, Vol. I, Loyola, São Paulo 2017, 217.
21 Cf. ibid., 219-220.
22 Cf. G. CroCetti, Josué, Juízes e Rute, São Paulo 1985, 51.
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monoteísta (v.11b; cf. Dt. 4,39). Sem dúvida, o versículo
11 esteve por detrás da inclusão de Raab nos exemplos
luminosos de fé citados em Hebreus 11,3123.
Raab assevera que YHWH é Deus em cima dos céus como
embaixo da terra. Deus é fiel às suas promessas e a terra de
Canaã é destinada aos hebreus. A aliança do Sinai mostra que
Deus cumpriu o seu pacto com o povo eleito com a entrada,
posse e divisão da terra prometida. O grande protagonista da
conquista da Terra Prometida é o Senhor, “foi o Senhor, vosso
Deus quem combateu por vós” (Js 23,3). Nota-se que Raab
estava ciente disso desde antes da acolhida dos espiões em sua
casa. Sua fé é atestada porque ela confiou nas promessas de
YHWH. Ela disse aos espiões: “Sei que YHWH vos deu esta
terra e caiu sobre nós o vosso terror, e todos os habitantes da
terra estão tomados de pânico diante de vós” (Js 2,9).
A história de Raab oferece não apenas um arquétipo de
um forasteiro que entra honrosamente no rebanho nacional,
mas também uma base para avaliar o comportamento dos
membros nativos da nação24. O relato de Raab e os espiões,
conjugado com Js 6,17.22,25, compõe “uma unidade literária
cuidadosamente desenvolvida”25 sobre diferentes versões da
captura de Jericó daquela encontrada em Js 6. A versão do
capítulo 6 é confirmada por Js 24,11. O capítulo 2 de Josué
serve como prolegômeno aos eventos que seguem: a) o envio
23 Cf. W. H. morton, “Josué”, en allen Clifton J. (ed.), Comentário Bíblico Broadman,
Vol. 2, Levítico – Rute, Rio de Janeiro 1994, 361-362.
24 Cf. J. L. wriGht, War, memory, and national Identity in the Hebrew Bible, Cambridge
2020, 14.
25 Cf. M. D. CooGan, “Josué”, en R. E. brown – J. A. Fitzmyer – R. E. murphy (eds),
Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, Santo André / São
Paulo 2012, 258-259.
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dos espiões por Josué precede a sua ação similar em Js 7,2; b) a
confissão de fé de Raab em YHWH e sua isenção da destruição
total requerida pelas regras de guerra antecipam a linguagem e
resultado similar dos gabaonitas em Js 9; c) o discurso de Raab
pressagia o discurso de Josué, no capítulo 2426.
No relato do resgate da família de Raab (Js 6,22-25),
ela e os seus familiares foram conduzidos a um lugar fora
do acampamento de Israel, pois este deveria ser mantido
ritualmente puro porque o Senhor andaria nele (Dt 23,10-14).
Os pagãos eram considerados impuros (Am 7,17; Esd 9,11),
deveriam ficar de fora do acampamento por um período de
purificação (Nm 31,19), podendo ser admitidos depois. Raab
foi admitida em Israel e habitou no meio deles27.
O que se constata é que o livro de Josué apresenta uma
prostituta, gentia, que habitava uma terra condenada pelo
pecado. Nem ela nem seus ancestrais tinham origem hebraica;
portanto, não tinham direito às promessas de Deus aos hebreus.
Era uma mulher moralmente repreensível (prostituta/meretriz)
e cidadã de uma terra cujos habitantes foram condenados à
morte por Deus devido à sua persistência no pecado28. Porém,
por causa de sua fé e ações, Raab e sua família são acolhidos
por YHWH entre os hebreus. Ela habita no meio de Israel até
hoje (Js 6,25), ou seja, pelos seus descendentes e, também, na
sua memória do povo. Deus não se esquece dos seus santos e
nem os deixa cair no esquecimento pelas futuras gerações.
26 Cf. ibid., 259.
27 Cf. morton, W. H., “Josué”, en allen Clifton J. (ed.), Comentário Bíblico Broadman,
Vol. 2, Levítico – Rute, Rio de Janeiro 1994, 379.
28 Cf. S. pérez millos, Comentario al libro de Josué, Barcelona 2020, 214
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Segundo João Crisóstomo, Padre da Igreja, Raab prefigura
a Igreja, pois ela recebeu os exploradores que vêm enviados
como apóstolos. Raab declarou: “Yaweh o vosso Deus é Deus
tanto em cima nos céus como embaixo na terra” (Js 2,11). Os
judeus receberam esta verdade, mas não a guardaram; a Igreja,
por sua vez, a recebeu e a guardou. Desta forma, Raab é a figura
da Igreja e digna de todo louvor29. Clemente de Roma afirma
que os espiões deram um sinal a Raab: ela deveria pendurar
um fio vermelho em sua casa. Isso mostra que pelo sangue do
Senhor serão redimidos todos os que creem em Deus. E João
Crisóstomo diz que em Raab foi encontrada a fé e a profecia30.
Sendo um escrito do final do primeiro século do cristianismo,
a Epístola de Clemente é de grande valor para ajudar a entender
vários aspectos da fé cristã, sendo, provavelmente, mais antiga
do que alguns livros do Novo Testamento31. De acordo com
Clemente, Raab não foi salva somente pela fé, ela também
demonstrou excepcional “amor a estranhos” (philoxenia),
especialmente a partir do acolhimento32, a exemplo de Abraão,
que acolheu os três homens, na aparição de Mambré (Gn 18)33.
Clemente Romano não está se referindo aqui à profissão de
Raab, mas à hospitalidade34. Praticada amplamente em todas
29 Cf. T. C. oden (ed.), Josué, Jueces, Rut, 1-2 Samuel. La Biblia comentada por los
Padres de la Iglesia: Antiguo Testamento, Vol. 4, Madrid 2009, 60.
30 Cf. ibid., 60.
31 Cf. J. L. wriGht, War, memory, and national Identity in the Hebrew Bible,
Cambridge 2020, 113.
32 Cf. M. dibelius, A commentary on the Epistle of James, Philadelphia 1996, 167; G.
C. bottini, Lettera di Giacono: nuova versione e comento, Milano 2014, 138; D. J.
moo, Tiago: introdução e comentário, São Paulo 2008, 116; F. laubaCh, Carta aos
Hebreus. Comentário Esperança, Curitiba 2013, 196.
33 R. P. martin, James. World Biblical Commentary, Vol. 48, Dallas 1988, 97.
34 Cf. M. dibelius, A commentary on the Epistle of James, Philadelphia 1996, 166-167;
R. P. martin, James. World Biblical Commentary, Vol. 48, Dallas 1988, 97; L. T.
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as sociedades mediterrâneas antigas, a hospitalidade é central
para a visão moral da Bíblia hebraica e do Novo Testamento,
e é um tema importante da Epístola de Clemente. Segundo
Clemente, o cordão escarlate que Raab pendurou em sua janela,
de acordo com as instruções dos espiões, é um sinal profético. A
cor significa “que pelo sangue do Senhor viria a redenção para
todos os que cressem e esperassem em Deus”35. A referência
à esperança está intimamente relacionada semanticamente à
palavra hebraica para cordão (tiqwāh - )36.
2. A menção à Raab em Hebreus 11,3137
Πίστει Ῥαὰβ ἡ πόρνη οὐ
συναπώλετο
31 a Pela fé Raab, a prostituta, não pereceu
τοῖς ἀπειθήσασιν, 31 b com aqueles que desobedeceram
δεξαμένη τοὺς κατασκόπους μετ’
εἰρήνης
31 c tendo recebido os espiões
pacificamente
Desde o início do cristianismo, a Carta aos Hebreus
apresenta dificuldade no que diz respeito à sua autoria. Tida
por muito tempo como sendo de autoria paulina, ela perdeu seu
status de carta paulina na segunda metade do séc. XX. Embora
de autoria muito disputada, se era ou não paulina, a Carta aos
Hebreus nunca foi tida como carta católica ou pertencente
Johnson, The Letter of James: a new translation with introduction and commentary,
New York 1995, 245; G. C. bottini, Lettera di Giacono: nuova versione e comento,
Milano 2014, 138; G. R. koester, Hebrews. The Anchor Bible, Vol. 36, New York /
London 2001, 510-511.
35 Cf. Clemente romano, Carta aos Coríntios. Primórdios cristãos e estrutura,
Petrópolis 1971, 28.
36 Cf. J. L. wriGht, War, memory, and national identity in the Hebrew Bible, Cambridge
2020, 114.
37 Os textos gregos aqui usados neste artigo são extraídos de Nestlé – Aland, 28ª
edição (2012), seja para o quadro, seja para as palavras ao longo do artigo. Esta
tabela foi elaborada pelos autores do artigo, que também fizeram a tradução do
texto grego para o português.
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ao corpus católico38. Ela enfrentou dificuldades para entrar
no cânon bíblico, sobretudo no Ocidente39. Gonzaga defende
que ela não pertence a nenhum dos dois corpora (paulino e
católico) e que ela deve ocupar seu próprio espaço, assim como
ocorre com o livro do Apocalipse. Embora não se conheça sua
autoria, hoje é tida e aceita pela maioria dos estudiosos como
não paulina40.
Guthrie sugere que a data da composição da carta pode ser
calculada a partir de sua relação com a queda de Jerusalém.
Como seu autor não menciona a destruição do Templo e sugere
que o ritual ali continua, alguns estudiosos costumam datá-la
antes de 70 a.C. O conteúdo judaico de sua teologia favorece
uma data não muito tardia41. Vouga, por sua vez, sugere a
datação na década dos anos 60 d.C., data da morte dos grandes
apóstolos, e/ou entre os anos 80-9042. Brown concorda com
Vouga, pois, segundo afirma, o autor parece não pertencer à
primeira geração de cristãos. Brown aponta que em Hb 2,3
o autor depende daqueles que ouviram o Senhor43. Há uma
referência de Clemente Romano à Carta aos Hebreus na sua
Carta aos Coríntios. Como a carta de Clemente é datada por
volta do último decênio do século I, este fica sendo o limite
para a composição de Hebreus44.
38 W. GonzaGa, “O Corpus Paulino no cânon do Novo Testamento”, en Atualidades
Teológicas 21/55 (2017) 19-41.
39 Ibid., 24.
40 W. GonzaGa, “As Cartas Católicas no Cânon do Novo Testamento”, en Perspectiva
Teológica 49/2 (2017) 422.
41 Cf. D. Guthrie, Hebreus: introdução e comentário, São Paulo 1991, 25-26.
42 Cf. F. VouGa, “A epístola aos Hebreus”, en D. marGuerat (org.), Novo Testamento:
história, escritura e teologia, São Paulo 2015, 423.
43 Cf. R. E. brown, Introdução ao Novo Testamento, São Paulo 2017, 907.
44 Cf. F. VouGa, “A epístola aos Hebreus”, en D. marGuerat (org.). Novo Testamento:
história, escritura e teologia, São Paulo 2015, 423.
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Divide-se o capítulo décimo primeiro de Hebreus em quatro
partes: 1) prólogo (11,13); 2) seção 1: primeiros exemplos
de fé (11,4-12); 2) interlúdio: fé dos peregrinos (11,13-16);
3) seção 2: mais exemplos de fé (11,1731); 4) crescendo
e conclusão (11,3240)45. A cada etapa, o autor da Carta aos
Hebreus cita uma série de textos bíblicos, comenta-os e os
atualiza, objetivando lembrar aos leitores a grande importância
da obra de salvação realizada em Jesus Cristo46. O estilo grego
da carta é bem elaborado e erudito.
O tema de Hb 11 é a fé, e Raab é citada como modelo de fé
no Deus de Israel47, “a qual tinha lhe inspirado sua iniciativa”48,
ao lado dos grandes patriarcas, sendo por isso, “respeitada por
seu povo” 49, e como tal será sempre recordada por Israel, e
igualmente o é pelo Novo Testamento50, visto que em Raab
a fé “triunfou”51. Seu exemplo é citado não segundo dados
da cronologia e sim do testemunho de fé, de uma estrangeria,
professado no Deus de Israel em favor de seu povo: “um novo
exemplo de fé se estabelece em relação com uma mulher,
Raab, que não pertencia ao povo de Israel”52. Ao longo de todo
45 Cf. G. H. Guthrie, “Hebreus”, en G. K. beale – D. A. Carson (orgs), Comentário do
uso do Antigo Testamento no Novo Testamento, São Paulo 2014, 1207.
46 Cf. F. VouGa, “A epístola aos Hebreus”, en D. marGuerat (org.), Novo Testamento:
história, escritura e teologia, São Paulo 2015, 419.
47 Cf. H. C. S. utrini, “Raab, a meretriz: desdobramentos e releituras do texto de Js
2,1-21; 6,22-25”, en ReBiblica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5 (jan./jun. 2022) 54-55.
48 A. Vanhoye, L’Epistola agli Ebrei, Bologna 2011, 259.
49 F. manzi, Carta a los Hebreos. Comentarios a La Nueva Biblia de Jerusalén. Bilbao
2005, 177.
50 Cf. T. G. lonG, Ebrei, Torino 2004, 151.
51 S. kistemaker, Tiago e Epístolas de João. Comentário do Novo Testamento, São
Paulo 2006, 480.
52 S. pérez millos, Hebreos. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2009, 679.
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175
o capítulo (Hb 11), o autor da carta vai citando uma série de
heróis da fé do Antigo Testamento, como uma de suas “figuras
proeminentes”53, para que seus leitores tenham em mente o
valor da fé e das boas obras de seus antepassados, homens e
mulheres, israelitas ou não, mas que agiram em prol de seu
povo e aderiram à fé no Deus de Israel, “e é significativo que
a série se conclua com Raab, a prostituta (Ῥαὰβ ἡ πόρνη), que
não era nem israelita e nem uma pagã de reputação respeitável,
sendo a única mulher a aparecer depois de Sara, na série, citada
pelo nome”54. É justamente ela quem vai completar a sequência
desta lista, tornando, “o último e grande argumento”55 em
defesa de uma fé operosa. Sobre este interesse, seja na Bíblia
seja na Patrística, acerca da figura de Raab, como mulher de fé
e de boas obras, Lane afirma:
“o catálogo de fé exemplar é introduzido com a referência
de Abel, no v.1, e concluído abruptamente com o exemplo
de Raab. Além de Sara, que é mencionada como esposa de
Abraão, no v.11”, Raab é a única mulher que é listada no
catálogo. Um interesse em Raab como um exemplo de fé e
boas obras faz parte da tradição56.
No v.1 o autor define a fé como um ato de confiança, um
acreditar naquilo que é invisível, impalpável. Para os crentes,
a fé é a certeza daquilo que não é sensível. No v.3 o autor
complementa que “É pela fé que compreendemos que os
mundos foram organizados por uma Palavra de Deus. Por isso,
53 R. P. martin, James. World Biblical Commentary, Vol. 48. Dallas 1988, 97.
54 H. W. attridGe, Hebrews. Hermeneia: a critical and historical commentary on the
Bible, Minneapolis 1989, 344.
55 G. R. koester, Hebrews. The Anchor Bible, Vol. 36, New York / London 2001, 510.
56 W. L. lane, Hebrews 9–13. World Biblical Commentary, Vol. 47B, Dallas 1991,
379.
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o mundo visível não tem sua origem em coisas manifestas”.
Pela fé percebemos que o mundo foi criado pela Palavra de
Deus, partindo da não existência visível57. Em contrapartida,
percebemos que o produto do homem supõe uma matéria
prima visível58. O capítulo prossegue mostrando as origens da
humanidade, elencando nos vv.4-7 alguns personagens do livro
do Gênesis que viveram antes do dilúvio, cuja fé exemplar
agradou a Deus (Gn 2,4-6; 6,5-22)59. Vale ressaltar que o autor
enfatiza no v.6 que sem fé é impossível agradar a Deus. Nos
vv.822, o autor aborda o exemplo de fé dos patriarcas Abrãao,
Isaac, Jacó e José, bem como a matriarca Sara, presentes no
livro de Gênesis, a segunda mulher a ser mencionada pelo
nome “na lista dos heróis da fé”60, junto com Raab. Porém,
há uma diferença na forma se referir a ambas: “Sara está
associada a Abraão, como mãe do povo eleito; Raab é uma
estrangeira – que será incorporada ao povo de Deus – e uma
pecadora pública ( ) que será salva”61. Segue nos vv.27-29
apresentando o personagem do Êxodo, Moisés, que libertou o
povo da escravidão no Egito e o conduziu à Terra Prometida.
Os vv.30-31 tratam do livro de Josué. Hebreus enfatiza que
foi pela fé que as muralhas de Jericó caíram, e é aqui que o autor
destaca a personagem Raab, a prostituta (Hb 11,31), pautando-
se “nas fontes das Escrituras (Js 2,1; 6,17.22.25)”62, que traziam
a informação de que Raab tinha sido uma prostituta/meretriz.
57 Cf. F. dattler, A Carta aos Hebreus, Paulinas, São Paulo 1980, 144.
58 Cf. ibid., 144.
59 Cf. S. hahn – C. mitCh, A Carta aos Hebreus, Cadernos de estudo bíblico,
Campinas 2020, 59.
60 C. spiCq, L’Épitre aux Hébreux. II. Commentaire, Paris 1952, 361.
61 Ibid., 361.
62 W. L. lane, Hebrews 9–13. World Biblical Commentary, Vol. 47B, Dallas 1991, 379.
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Ela não morreu como os indóceis, incrédulos, desobedientes, ou
seja, os cananeus, pois ajudou os espiões hebreus e foi salva pela
misericórdia de Deus. Nos vv. 32-40, o autor relata a história de
fé do povo e que se estende até os dias da comunidade. Destaca
que todas essas pessoas viveram na fé e agradaram a Deus,
porém nenhuma delas alcançou a promessa (v.39), pois a sua
realização vem com Cristo. O objetivo do autor é expressar que
os fiéis da Primeira Aliança, falecidos antes de Cristo, foram
exemplos de fé e perseverança e, também, quer mostrar que
os cristãos têm um estímulo a mais para perseverar e crer: a
efetivação da promessa, pois Cristo os salvou63. Conforme
Jesus disse aos seus apóstolos: “Felizes os vossos olhos, porque
vêm, e os vossos ouvidos porque ouvem. Em verdade vos digo
que muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes e não
viram, e ouvir o que ouvis e não ouviram” (Mt 13,16.17; Lc
10,23-24).
Nesse sentido, é possível dizer que a fé dos santos do Antigo
Testamento é celebrada em Hb 1164. Eles acreditaram sem ver
e só entraram na herança que vislumbraram de longe quando
Jesus abriu caminho para sua glória65. Nós cristãos, temos a
realidade visível da salvação, Jesus Cristo, e por isso devemos
seguir seus exemplos na firmeza da fé. Raab não pertencia
ao povo de Deus, ela era uma mulher, pagã, amonita, de uma
raça amaldiçoada, prostituta e cidadã de uma cidade maldita66.
O termo hebraico (zônah), de Js 2,1, não deixa dúvida, e tão
63 Cf. F. dattler, A Carta aos Hebreus, São Paulo 1980, 158.
64 Cf. S. hahn – C. mitCh, A Carta aos Hebreus, Cadernos de estudo bíblico,
Campinas 2020, 58.
65 Cf. ibid., 61.
66 Cf. R. C. H. Lenski, The Interpretation of the epistle to the Hebrews and The Epistle
of James, Ohio 1946, 414.
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pouco no grego (πόρνη), de Hb 11,31, “que significa prostituta
ou meretriz”67. Apesar de tudo indicar que seu destino seria um
fracasso, a sua fé mudou sua sorte e permanece, para sempre,
como modelo de fé e fidelidade a Deus68.
O autor da Carta aos Hebreus escolhe e apresenta alguns
personagens do Antigo Testamento para descrever a fé sólida
deles. Raab não possuía nenhum “direito”, nenhuma promessa
havia sido feita a ela, pois não tinha nenhum vínculo com o povo
de Israel. Mais ainda, parece que seus atributos a colocavam
em situação de marginalização diante dos critérios humanos,
triplamente, pois se tratava de uma mulher, estrangeira e
prostituta69. Porém, pelo que havia ouvido falar do Deus dos
hebreus, pela constatação de que Ele havia ajudado seu povo
nas vitórias contra Seon e Og (Js 2,10) e pela promessa de que a
terra dos cananeus estava destinada aos hebreus (Js 2,9), Raab
acreditou n’Ele: “ela conhece as promessas sobre a terra (Js
2,9)”70. Mais ainda, “ela crê e espera nas promessas do Deus
de Israel”71. Tudo indica que o autor de Hebreus levou em
consideração o fato de que “Raab era uma mulher crente, em
um mundo rodeado pelo pecado”72. A fé vem pelos ouvidos e
Raab se deixou seduzir e conduzir pelas conquistas e promessas
67 S. pérez millos, Hebreos. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2009, 679.
68 Cf. R. D. phillips, Estudos bíblicos expositivos em Hebreus, São Paulo 2018, 494.
69 Cf. S. pérez millos, Hebreos. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2009, 680.
70 C. marCheselli-Casale, Lettera a gli Ebrei, Milano 2005, 526.
71 G. R. koester, Hebrews. The Anchor Bible, Vol. 36, New York / London 2001, 510.
72 S. pérez millos, Hebreos. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2009, 681.
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do Deus de Israel73. Este Deus se opunha aos costumes dos ritos
cananeus, carregados de orgias sexuais. É o Deus da libertação,
da obediência e da salvação. A fé de Raab fez com que ela
acolhesse os espiões em sua casa74, indicando que a fé pede
boas obras: “a evidência da fé se manifesta em obras: tendo
recebido os espiões pacificamente”75. Além disso, segundo
Mazzarolo, a preocupação dos autores bíblicos é muito mais
com os padrões de ética social do que apenas com certos graus
de “moralidade”, como temos em Raab76. Além disso, há o fato
de que “Raab não apenas creditava em Deus, mas sobretudo
em sua misericórdia e fidelidade”77, de que ela e sua família
permaneceriam vivos78. Ademais, a própria Escritura enfatiza
que “o justo viverá por sua fé/fidelidade” (Hab 2,4). É neste
sentido que, aberta à fé israelita e nela permanecido,
Raab, justificada por suas obras, na fé, age em paz.
Magistral intervenção de Hebreus no debate sobre fé e obras
da fé. Inserindo-se entre Paulo e Tiago, Hebreus dá seu
contributo: as obras da paz não podem vir se não da fé. Por
isso justificam. Que hebreus pense apenas à hospitalidade
está excluído, a partir do momento que o termo apropriado
73 Cf. H. W. attridGe, Hebrews. Hermeneia: a critical and Historical Commentary
on de Bible, Minneapolis 1989, 344; W. L. lane, Hebrews 9–13. World Biblical
Commentary, Vol. 47B, Dallas 1991, 379; S. kistemaker, Tiago e Epístolas de
João. Comentário do Novo Testamento, São Paulo 2006, 480; R. C. H. lenski,
The Interpretation of the epistle to the Hebrews and The Epistle of James, Ohio
1946, 414.
74 Cf. H. W. attridGe, Hebrews. Hermeneia: a critical and Historical Commentary
on de Bible, Minneapolis 1989, 344; S. kistemaker, Tiago e Epístolas de João.
Comentário do Novo Testamento, São Paulo 2006, 480.
75 S. pérez millos, Hebreos. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2009, 682.
76 I. mazzarolo, Carta de Tiago e Judas, Rio de Janeiro 2016 160.
77 S. pérez millos, Hebreos. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2009, 681.
78 W. L. lane, Hebrews 9–13. World Biblical Commentary, Vol. 47B, Dallas 1991, 379.
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ao escopo (philoxenia, Hb 13,2) é bem claro. Raab acolheu
alguns exploradores do povo de Deus na fé, na paz79.
Pérez Millos afirma que Raab pode ter sido uma prostituta
sagrada no templo de Aserá ou Astarte e, por se tratar de uma
prostituta cultual, podia ter alguns favores e privilégios80.
Segundo ele, o trabalho no templo da deusa da fertilidade
poderia explicar por que ela possuía uma hospedaria, local
em que poderia praticar a prostituição. O hebraico (zônāh)
pode se referir à prostituição secular ou cultual; no entanto,
existe um termo específico para tal, que é (qedešah)81.
Os espiões escolheram um local público, em que poderiam
se esconder sem serem notados, pois, na época, a casa de
prostituição funcionava como hospedaria e era frequentada por
muitos homens. Além disso, a casa de Raab ficava encostada nos
muros da cidade, o que facilitava a rota de fuga dos hebreus de
Jericó. A prática da prostituição era considerada uma atividade
pecaminosa aos olhos de YHWH e condenada pela lei mosaica;
não obstante, ela existia. Porém, os habitantes de Canaã estavam
destinados à morte porque eram desobedientes82.
Em Hb 11,30, lêse que “foi pela fé que as muralhas de
Jericó caíram depois que o povo marchou ao redor delas por sete
dias”. Em analogia, a recepção dos espiões por Raab atesta sua
79 C. marCheselli-Casale, Lettera a gli Ebrei, Milano 2005, 526.
80 Cf. S. pérez millos, Hebreos. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2009, 680; S. pérez millos, Santiago. Comentario
Exegético al Texto Griego del Nuevo Testamento, Barcelona 2011, 156.
81 Cf. R. BolinG – G. E. wriGht, Joshua: New Translation with Notes and Commentary,
New York 1982, 144.
82 Cf. S. pérez millos, Hebreos. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2009, 680.
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fé, visto que a destruição de Jericó ainda era um evento futuro.
A fé, de acordo com o proêmio de Hb 11, é “a garantia das
coisas que se esperam, a prova das realidades que não se veem”
(11,1)83. Ela se salvou por acreditar em realidades invisíveis e
futuras (v.11). Sua profissão de fé aos espiões revela que ela
acreditava que o futuro da terra de Canãa estava nas mãos dos
hebreus e que essa lhe foi dada por YHWH, Deus tanto em
cima dos céus como embaixo da terra (Js 2,9.11)84.
A atitude de “fé genuína”85 de Raab não ficou sem resposta,
pois ela e sua família foram salvos. A fé ultrapassa os limites de
Israel e seu povo. Como afirma Laubach: “a alegre mensagem
de que Deus amou o mundo para que ninguém fosse excluído de
sua salvação, já reluz na vida de Raab”86. O autor ressalta que
Raab recebe a promessa dos espiões que ela e sua família serão
poupados. Esta é uma afirmação verbal. Ela também recebe
deles um cordão escarlate para que o amarrasse do lado de fora
da janela de sua casa recostada ao muro da cidade. Quando
os israelitas invadissem Jericó, veriam o sinal e poupariam
aqueles que estivessem na casa de Raab. O cordão era um sinal
para a salvação de Raab e sua família, e ela o recebe com fé.
Raab estava salva desde o momento em que, pela fé, amarrou
o cordão vermelho em sua janela: “pela fé simbolizada pelo
cordão vermelho”87. Ela acreditou naquilo que era invisível e
83 Cf. J. L. wriGht, War, Memory and National Identity in the Hebrew Bible, Cambridge
2020, 115.
84 Cf. F. manzi, Carta a los Hebreos. Comentarios a La Nueva Biblia de Jerusalén,
Bilbao 2005, 177.
85 S. pérez millos, Hebreos. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2009, 683.
86 Cf. F. laubaCh, Carta aos Hebreus: Comentário Esperança, Curitiba 2013, 195.
87 T. C. oden (ed.), Hebreos. La Bíblia comentada por los Padres de la Iglesia.
Nuevo Testamento, Vol. 10, Madrid 2008, 283.
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foi salva, foi acolhida na comunhão do povo de Israel (Js 6,22
25). Os autores das duas cartas do Novo Testamento, Hebreus e
Tiago, provavelmente tinham isso muito presente no momento
da escrita de seus textos e registraram tanto a fé como as boas
obras de Raab, e como Deus agiu na vida das pessoas e por
meio da vida dessa mulher, desprezada aos olhos humanos88.
Da mesma forma, Deus continua agindo por meio de pessoas
que, aos olhos humanos, são tidas como desprezadas.
Clemente Romano diz que a prostituta Raab foi salva por
causa da fé e da hospitalidade. Após combinar com os espiões a
sua segurança e de sua família, os hebreus deramlhe um sinal:
“pendurar na casa algo escarlate. Dessa forma, tornavam claro
que o sangue do Senhor resgataria todos aqueles que acreditam
e esperam em Deus. Vede, caríssimos, que nessa mulher havia
não havia só a fé, mas também a profecia”89. Clemente dá uma
interpretação cristã ao cordão de cor vermelha e o aplica em
relação ao Filho Unigênito do Pai: é um sinal profético que
remete ao sangue de Cristo que trará a salvação para a casa
de Raab. Vale destacar que a doutrina da fé salvífica é um
ponto central para a interpretação cristã dos relatos bíblicos.
Porém, esta interpretação é estranha ao relato de Josué na sua
forma hebraica, bem como nas traduções gregas realizadas por
estudiosos gregos no período greco-romano90.
Teodoreto de Ciro, outro Padre da Igreja, afirma que a força
do Espírito de Deus associou a Moisés, Abraão, Noé, Enoque e
aos demais santos uma prostituta estrangeira para demonstrar o
88 Cf. F. laubaCh, Carta aos Hebreus. Comentário Esperança, Curitiba 2013, 196.
89 Cf. C. romano, Patrística-Padres, São Paulo 2002, 32.
90 Cf. J. L. wriGht, War, Memory and National Identity in the Hebrew Bible, Cambridge
2020, 114.
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poder da fé e suprimir o orgulho dos judeus. Eles se perderam
no deserto pela sua falta de fé sem terem obtido benefício algum
de sua organização segundo a Lei. Raab não vivia de acordo
com a Lei, vivia uma vida de devassidão. Por outro lado, sua fé,
a exemplo de Abraão (Gn 15,6), foi tida em causa de salvação
e esboçou uma prefiguração da Igreja. Para Teodoreto, assim
como Raab acolheu os espiões com fé, por exemplo, assim a
Igreja acolheu os apóstolos; assim como ela recebeu o cordão
escarlate como sinal da salvação, também a Igreja, pelo sangue
do Senhor, obteve os bens eternos91. Justino Mártir, também
Padre da Igreja, comenta que o cordão escarlate dado a Raab
pelos espiões, e por causa dele escaparam, “era símbolo do
sangue de Cristo”92. Através desse sangue se salvaram aqueles
que anteriormente praticavam a fornicação e iniquidade,
pessoas de todas as nações que, ao receberem o perdão de seus
pecados, não voltaram a pecar93. Tudo isso vai revelando o
olhar da Igreja sobre a pessoa e figura de Raab, que de forma
alguma passa despercebida, pelo contrário.
O autor da carta aos Hebreus descreve os cidadãos de Jericó
como desobedientes, colocando-os no mesmo nível que os
israelitas rebeldes que pereceram no deserto94. Esta qualificação
atribuída aos habitantes de Jericó mostra que, ao fecharem as
portas da cidade aos israelitas, não creram, portanto, mereceram
a morte95. O interdito descrito em Dt 7,1-2.23-24 explicita como
91 Cf. T. C. oden (ed.), Hebreos. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia.
Nuevo Testamento, Vol. 10, Madrid 2008, 282.
92 T. C. oden (ed.), Hebreos. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia. Nuevo
Testamento, Vol. 10, Madrid 2008, 282.
93 Cf. ibid., 283.
94 Cf. S. kistemaker, Exposição de Hebreus. Comentário do Novo Testamento, São
Paulo 2013, 480.
95 Cf. A. Vanhoye, L’Epistola agli Ebrei, Bologna 2011, 260.
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os moradores de Canãa deveriam ser tratados96. De acordo com
este texto bíblico, quando uma cidade que pertencia a Deus era
tomada por estrangeiros, todos os seus habitantes deveriam ser
mortos, e eis o que ocorreu em Jericó, salvo Raab e sua família,
que foram preservados.
A descrição do povo de Jericó como desobediente expõe que,
assim como Raab, eles devem ter ouvido falar das proezas do
Deus de Israel em favor de seu povo e, ao invés de acreditarem
como Raab, optaram por resistir ao povo de Deus97. Raab ajudou
aqueles que compartilhavam a mesma fé que ela e os teve como
irmãos de fé. Optou por escolher seguir a fé em Deus, do que
resistir a Ele. Por tudo isso, a carta aos Hebreus nos ensina que
a fé de Raab a salvou do destino daqueles que não obedeceram
a YHWH. A obediência na fé agrada ao Senhor e Raab será
sempre tida como mulher de fé98, que, de estrangeira e estranha
ao povo hebreu, passa a pertencer à linhagem e genealogia de
Cristo (Mt 1,5), bem como louvada e recordada como mulher
de fé (Hb 11,31) e de boas obras (Tg 2,25).
3. A menção de Raab em Tiago 2,24-2599
ὁρᾶτε ὅτι ἐξ ἔργων 24a Vês que pelas obras
δικαιοῦται ἄνθρωπος 24b é o homem justificado
καὶ οὐκ ἐκ πίστεως μόνον. 24c e não somente pela fé.
96 Cf. R. hess, Josué, São Paulo 2008, 41.
97 Cf. D. Guthrie, Hebreus: introdução e comentário, São Paulo 1991, 227.
98 Cf. T. lonG, G. Ebrei, Torino 2004, p. 151.
99 Os textos gregos aqui usados neste artigo são extraídos de Nestlé – Aland 28ª
edição (2012), seja para o quadro, seja para as palavras ao longo do artigo. Esta
tabela foi elaborada pelos autores do artigo que também fizeram a tradução do
texto grego para o português.
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ὁμοίως δὲ καὶ Ῥαὰβ ἡ
πόρνη οὐκ ἐξ ἔργων
ἐδικαιώθη,
25a E da mesma maneira, também
Raab, a prostituta não foi
justificada pelas obras
ὑποδεξαμένη τοὺς ἀγγέλους 25b tendo acolhido os espiões
καὶ ἑτέρᾳ ὁδῷ ἐκβαλοῦσα 25c e os fazendo voltar por um outro
caminho?
A carta de Tiago encabeça as Cartas Católicas no cânon
do Novo Testamento100. Seu autor se apresenta como “Tiago,
servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”. No Novo Testamento
encontramos cinco homens chamados Tiago101. São eles: a)
Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (Mc 1,19). Ele faz
parte do grupo dos quatro primeiros discípulos chamados por
Jesus (Mc 1,19; Mt 4,21; Lc 5,10) e figura na primeira lista
do grupo dos Doze Apóstolos (Mc 3,16-18; Mt 10,2; Lc 6,14;
At 1,13). De acordo com At 12,2, ele morreu em 44 d.C.,
como mártir; b) Tiago, filho de Alfeu, mencionado na lista dos
Doze (Mc 3,18; Lc 6,15; At 1,13; nomeado em Mt 10,3); c)
Tiago, irmão do Senhor, que aparece nos Evangelhos como
membro da família “incrédula” de Jesus (Mc 6,3; Mt 13,55):
ele também é citado em 1Cor 15,37 encabeçando uma série
de testemunhas do Ressuscitado e, também, aparece em 1Cor
15,5-7. Paulo escreve que o encontrou várias vezes (Gl 1,19;
2,9) e é considerado uma das colunas do cristianismo nascente
(Gl 2,9)102; d) Tiago, o menor, neto de certa Maria (Mc 15,40);
e) Tiago, pai do apóstolo Judas (Lc 6,16; At 1,13).
100 W. GonzaGa, “As Cartas Católicas no Cânon do Novo Testamento”, en Perspectiva
Teológica 49/2 (2017), 421-444.
101 Cf. G. hörster, Introdução e síntese do Novo Testamento, Curitiba 2008, 158.
102 Cf. F. VouGa, “A epístola aos Hebreus”, en marGuerat Daniel (org), Novo
Testamento: história, escritura e teologia, São Paulo 2015, 522.
Rahab, la ramera: mujer de fe (Heb 11,31) y de buenas obras (Sant 2,24-25)
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Como a sua autoria é incerta, esta carta enfrentou
dificuldades para ser aceita desde o início do cristianismo103.
Gonzaga realça que na carta de Tiago encontrase o eco do mais
genuíno ensinamento sapiencial e profético em forma cristã e
que o autor é mestre de uma ética-moral austera104. Entre os
exemplos de pessoas de “fé genuína”105, comprometida com
boas obras, Tiago cita justamente Raab, a prostituta (Tg 2,25-
26).
Na época da Reforma Protestante, Erasmo questionou a
opinião de que a carta teria sido escrita pelo “irmão do Senhor”,
uma vez que o grego era de boa qualidade. Lutero criticou mais
fortemente a carta, chamoua de “epístola de palha”, pois, além
de questionar a autoria apostólica de Tiago, pensava que a carta
se atritava com o tema da justificação pela fé. Para Lutero, a
carta “desfigura as Escrituras e, assim opõese a Paulo e a todo
texto sagrado”106.
Hoje em dia, a maioria dos estudiosos aceita que o autor é
um cristão versado tanto no helenismo quanto no judaísmo, que
escreveu a carta sob o nome Tiago de Jerusalém, na segunda
metade do século I d.C.107. A carta é um escrito uniforme que
sugere pertencer a um único autor108. Ela se dirige às Doze tribos
103 W. GonzaGa, “As Cartas Católicas no Cânon do Novo Testamento”, Perspectiva
Teológica 49/2 (2017), 423.
104 Ibid., 423.
105 S. pérez millos, Santiago. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2011, 158.
106 Cf. D. J. moo, Tiago: Introdução e comentário, São Paulo 2008, 18.
107 Cf. T. W. leahy, “Epístola de Tiago”, en R. E. brown – J. A. Fitzmyer, – R. E. murphy,
Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos,
São Paulo 2018, 668.
108 Cf. G. hörster, Introdução e síntese do Novo Testamento, Curitiba 2008, 156-158
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da dispersão (Tg 1,1), indicando um possível endereçamento
aos cristãos provenientes do judaísmo e que vivem fora da
Palestina.
A carta demarca a escolha existencial e real da pobreza. A
partir do seu conteúdo, é possível perceber que seus destinatários
eram judeus, pessoas pobres que viviam uma situação de
tensão social; que eram oprimidos (Tg 5,46), arrastados para
os tribunais (Tg 2,6); zombados por outras pessoas por causa
de sua fé (Tg 2,7). Apesar das dificuldades encontradas, esses
crentes enfrentaram esta situação com perseverança para que
a vida cristã fosse amadurecendo e a recompensa lhes fosse
assegurada (Tg 1,2–4,12)109.
Unida a Abraão, Raab é apresentada em Tg 2,2425 com
“exemplo de fé manifestada em obras”110, trazendo consigo
igualmente toda a carga de ser “uma mulher prostitua e pagã”111,
não sendo judaica e nem de vida nos moldes judaicos112. Porém,
serviu um bom exemplo “argumento para Tiago”113, pois, para
Tiago, “a verdadeira fé”114, tanto ontem como hoje, manifesta-
se em boas obras, especialmente no amor ao próximo (Tg
2,28). Como afirma Moo, o exemplo de Raab se torna gigante
e paradigmático, porque se se falasse da fé e das boas obras de
109 Cf. D. J. moo, Tiago: Introdução e comentário, São Paulo 2008, 31.
110 S. pérez millos, Santiago. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2011, 156.
111 M. dibelius, A commentary on the Epistle of James, Philadelphia 1996, 166.
112 Cf. H. C. S. utrini, “Raab, a meretriz: desdobramentos e releituras do texto de Js
2,1-21; 6,22-25”, en ReBiblica, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5 (jan./jun. 2022) 55-56.
113 R. P. martin, James. World Biblical Commentary, Vol. 48, Dallas 1988, 97.
114 S. pérez millos, Santiago. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2011, 160.
Rahab, la ramera: mujer de fe (Heb 11,31) y de buenas obras (Sant 2,24-25)
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Abrão, isso seria como que falar do óbvio, pois fé e boas obras
“eram o mínimo que se poderia esperar de alguém que tivesse
experimentado a graça de Deus de um modo tão rico, o mesmo
já não seria verdade a respeito de Raab”115. Nesse sentido,
“tanto o patriarca quanto a prostituta são declarados justos com
base nas obras que provinham da fé que possuíam”116. É nesse
sentido que,
Raab, a prostituta (v.31), uma pagã habitante na Jericó
cananeia, encera a série dos campeões da fé no AT, embora
não tivesse tido nenhum título para aparecer nesta lista de
heróis na fé se a sua coragem não lhe tivesse conquistado
um posto na literatura judaica e cristã”. Ao lado de Sara
(v.11) e de outras mulheres globalmente recordadas no
v.35, Raab é a segunda e última mulher a ser mencionada
em Hb 11, seguramente não com o escopo de sustentála
em sua profissão de prostituta (pornē) da cidade117.
O capítulo 2 de Tiago discute dois temas centrais: 1) em
Tg 2, 1-13, o autor exorta a comunidade a resistir aos poderes
da discriminação, tão comuns no passado como ainda hoje; 2)
em Tg 2, 14-26, ele aborda o tema da fé e das obras que devem
decorrer da mesma, visto que, sem tal sinergia a cristã entra em
contradição consigo mesma. Tiago não menciona a fé e sim as
boas obras decorrentes dela, praticadas por Raab. No entanto,
provavelmente o autor pressupõe que seus leitores conheciam
o livro de Josué e sabiam que a “prostituta de Jericó”, por
acreditar no Deus de Israel e agir em favor dos fiéis israelitas,
alcançou a salvação para si e sua família por sua adesão à fé
115 D. J. moo, Tiago: Introdução e comentário, São Paulo 2008, 115.
116 D. J. moo, Tiago: Introdução e comentário, São Paulo 2008, 116.
117 C. marCheselli-Casale, Lettera a gli Ebrei, Milano 2005, 525.
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no Deus de Israel, confiando em sua “misericórdia”118. O fato
de não mencionar a fé de Raab não quer dizer que Tiago não a
pressuponha. Antes, ele deseja enfatizar que as obras participam
de modo decisivo na salvação e não somente a fé119.
Tiago não opõe fé e obras. Pelo contrário, para ele, a fé cristã
sem obras é morta, é como um corpo sem alma (Tg 2,26): “não se
pode, pois, dissociar as obras da fé. Aquelas são uma expressão
genuína desta”120. Para tanto, ele extrai dois personagens do
Antigo Testamento, cu jas atitudes são exemplares: Abraão (Gn
15,6 4 22, 1617) e Raab, em Js 2; aliás, eles são citados como
modelos de fé pelo autor da carta aos Hebreus (Hb 11,.31).
Os dois personagens são colocados em paralelo pelo autor.
Martin realça que Abrãao e Raab “têm em comum”121 o fato de
serem prosélitos, estrangeiros, de terem dado hospitalidade aos
mensageiros de Deus (Gn 18; Js 2,1-21)122, o que os tornava
um bom exemplo a ser transmitido aos prosélitos em geral, e
não apenas aos judeus123. Ambos tiveram fé no Deus de Israel
e foram exemplos de fé viva e ativa. Suas atitudes cheias de fé
foram o principal motivo de serem considerados justos diante
de Deus e capazes de praticar boas obras e viver o projeto de
Deus no concreto de suas histórias124.
118 S. pérez millos, Santiago. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2011, 158.
119 Cf. F. mussner, La Lettera di Giacomo: Commentario Teologico del Nuovo
Testamento, Brescia 1970, 210.
120 S. pérez millos, Hebreos. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2009, 683.
121 R. P. martin, James. World Biblical Commentary, Vol. 48, Dallas 1988, 97.
122 Cf. S. pérez millos, Santiago. Comentario Exegético al Texto Griego del Nuevo
Testamento, Barcelona 2011, 156; D. J. moo, Tiago: Introdução e comentário, São
Paulo 2008, 116.
123 P. perkins, I e II Pietro, Giacomo e Giuda, Torino 2005, 123.
124 Cf. R. P. martin, James. World Biblical Commentary, Vol. 48, Dallas 1988, 97.
Rahab, la ramera: mujer de fe (Heb 11,31) y de buenas obras (Sant 2,24-25)
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Segundo Tiago, não basta ouvir a Palavra de Deus, devese
colocá-la em prática. O autor da carta provoca seus leitores ao
deixar a pergunta em aberto, induzindo-os a pensar se a atitude
de Raab para com os mensageiros hebreus não teria sido a fonte
de sua salvação. O leitor pode verificar no livro de Josué que a
atitude de Raab não só preservou a sua vida e de seus familiares,
mas garantiu uma boa vida entre os novos habitantes de Canaã,
os hebreus.
Alguns autores observam uma tensão entre Paulo e Tiago
no tema da justificação, pois há divergência ao sentido da
palavra “obras” (erga). Paulo exclui as obras da lei para obter a
justificação, ou seja, ele não concorda com a obrigatoriedade da
prática das obras da lei como condição para se obter a salvação.
No entendimento de Paulo, não é possível ser justificado pelas
obras da lei quando estas precedem a conversão. Em Tg 2, as
obras são as que se originam na fé e por ela são produzidas,
ou seja, seguem a conversão125. Para Tiago, as obras cumprem
a lei do amor, da caridade fraterna (Tg 2,8), mas para Paulo
igualmente a plenitude da lei se cumpre no “amor ao próximo”
(Gl 5,14 e Rm 13,810). Porém, é comum fazer a oposição
entre Paulo e Tiago: para Paulo, a justificação vem pela fé; para
Tiago, pelas obras. Em Romanos e em Gálatas, Paulo discute
com judaizantes que acreditam que a circuncisão e observação
de ritos judaicos eram necessárias para a salvação. O “apóstolo
dos gentios” (Rm 11,13) rebate o argumento dos judaizantes,
dizendo que Abraão não foi justificado por tais obras e sim pela
fé (Gn 15,6), pois acreditou na promessa de Deus126.
125 Cf. D. J. moo, Tiago: Introdução e comentário, São Paulo 2008, 46-47.
126 Cf. M. dibelius, A commentary on the Epistle of James, Philadelphia 1996, 166.
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Tiago, por sua vez, fala para uma comunidade de judeu-
cristãos que se encontra acomodada. Eles dizem crer em
Jesus, mas não agem conforme a fé. Tiago afirma que a fé de
Abraão se confirma com sua prática127. Em Tg 2,21, Abraão
é colocado como modelo de fé por dois motivos: deixou
sua terra e parentela rumo à Terra Prometida (Gn 12,19), e
estava disposto a realizar o sacrifício de seu filho Isaac (Gn
22, 9). Em Tg 2,25, há uma pergunta retórica que apela para a
resposta positiva do leitor: “Da mesma maneira também Raab,
a prostituta, não foi justificada pelas obras, quando acolheu
os mensageiros e os fez voltar por outro caminho?”. Raab
também é considerada modelo de fé, porque abrigou os espiões
israelitas e ensinou-lhes um outro caminho para retornarem
(Js 2,8-24; Hb 11,31)128, sendo igualmente considerada “uma
heroína de fé, em vista de sua profissão e fé no Deus de Israel
como se lê em Js 2,11”129. Apesar de não explicitar diretamente
a fé de Raab, Tiago mostra-se a favor da fé acompanhada de
suas obras. Ele admoesta que a justificação pela fé exige as
obras da fé, diferentemente das obras da Lei (Tg 2,24). No
v.26, a comparação entre corpo e espírito indica que fé e obras
são igualmente indispensáveis130, e Raab é oferecida como
testemunho de “envolvente cooperação entre fé e obras”131.
127 Cf. J. konninGs – K. waltraud, A Bíblia passo a passo: Carta de Tiago, Pedro, João
e Judas, São Paulo 1995, 17.
128 Cf. I. mazzarolo, Carta de Tiago e Judas, Rio de Janeiro 2016, 61; C. marCheselli-
Casale, Lettera a gli Ebrei, Milano 2005, 526.
129 M. dibelius, A commentary on the Epistle of James, Philadelphia 1996, 166;
igualmente para R. P. martin, James. World Biblical Commentary, Vol. 48, Dallas
1988, 96; S. pérez millos, Santiago. Comentario Exegético al Texto Griego del
Nuevo Testamento, Barcelona 2011, 158.
130 T. W. leahy, “Epístola de Tiago”, en R. E. brown – J. A. Fitzmyer – R. E. murphy,
Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos,
São Paulo 2018, 675.
131 M. dibelius, A commentary on the Epistle of James, Philadelphia 1996, 166.
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Neyrey argumenta que Paulo e Tiago discutem questões
diferentes. Paulo se opunha aos judaizantes que alegavam que
o princípio da salvação se baseava na observância à Torá. Ao
evangelizar os pagãos, Paulo percebe que Deus salva a todos
que creem n’Ele e, com isso, surge a antítese lei versus fé. Para
Neyrey, Tiago versa sobre a fé que os discípulos de Cristo devem
adotar: uma fé ativa em oposição a uma fé morta. Tiago quer
mostrar à sua comunidade que a fé em Deus vem acompanhada
de obras de misericórdia, é uma fé viva e ativa132. Ele une fé e
obras, e com isso corrige falsas interpretações acerca da teologia
de Paulo no que diz respeito à justificação pela fé (Rm e Gl).
Aqueles que se apoiavam falsamente nessa pregação faltavam
com a caridade e a justiça, e se acomodavam numa situação
inerte perante as necessidades dos mais desfavorecidos.
Para Wright133, a carta de Tiago atribui o resgate de Raab
às suas “obras” em vez de uma sua simples confissão de fé.
Ao lado de Abraão, ela é colocada como “amiga de Deus”
(2,23)134. O autor de Tiago passa a traduzir esses fatos em
categorias teológicas cristãs: “uma pessoa é justificada pelas
obras, e não somente pela fé”. O autor se apoia em Tg 2,19,
que afirma que crenças ou credos não são suficientes: “Tu crês
que há um só Deus? Ótimo! Lembra-te, porém, que também
os demônios creem, mas estremecem”. Tiago não menciona
a fé de Raab, mas explica que isso fica evidente em Js 2,11.
Os seus concidadãos também possuíam uma espécie de fé (Js
2,9-11), mas somente ela agiu por causa da fé e, por isso, foi
132 Cf. J. H. neyrey, “Tiago”, en D. berGant – R. karris (orgs). Comentário Bíblico, Vol.
3, São Paulo 2017, 324.
133 Cf. J. L. wriGht, War, Memory and National Identity in the Hebrew Bible, Cambridge
2020, 116.
134 M. dibelius, A commentary on the Epistle of James, Philadelphia 1996, 166.
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salva (Js 6,22-25)135. Raab, tida como “mulher de má fama”,
teve posição de destaque na história da salvação porque aceitou
as consequências práticas de sua fé. Ela agiu conforme sua fé
diante dos espiões israelitas e, por isso, não pereceu136. Sua
influência se tornou tão grande na vida de Israel que “mais
tarde veio até mesmo a ser a matriarca da dinastia de Davi, e
consequentemente, também de Jesus (Mt 1,5)”137.
Pacômio, Padre da Igreja, afirma que Raab está entre os
justos. Sendo prostituta, foi contabilizada entre os santos138.
Beda, também Padre da Igreja, argumenta que Raab, uma
mulher pecadora, estrangeira, mereceu ser justificada por suas
obras de misericórdia. Ela hospedou os servos de Deus, pondo
sua própria vida em risco para tal139. Concluindo, o fato de Raab
receber os espiões israelitas implica muito mais do que abrir a
porta da casa, significa recebêlos, como se fossem convidados
distintos. A fé invisível é feita visível na conduta de Raab e na
conduta dos crentes140. Em Tiago, Raab é citada como mulher
que, além de ter fé, age de acordo com a vontade de Deus. Por
isso, foi justificada. Ela é exemplo de que fé e obras devem
estar presentes na vida do fiel para que seja salvo.
135 Cf. T. W. leahy, “Epístola de Tiago”, en R. E. brown – J. A. Fitzmyer – R. E. murphy,
Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos,
São Paulo 2018, 674-675.
136 Cf. G. Fritz, “Carta de Tiago”, en F. GrünzweiG – U. holmer – W. boor, Cartas de
Tiago, Pedro, João e Judas, Curitiba 2008, 70.
137 Ibid., 70.
138 Cf. T. C. oden, (ed.), Tiago, 1-2 Pedro, 1-3 Juan, Judas. La Bíblia comentada por
los padres de la Iglesia: Nuevo Testamento, Vol. 11, Madrid 2008, 76.
139 Cf. ibid., 76.
140 Cf. S. pérez millos, Comentario al libro de Josué, Barcelona 2020, 226.
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4. Raab: traidora ou heroína de seu povo?
Afinal, Raab foi uma heroína ou uma traidora de seu povo?
O que a levou a mentir para os vassalos do seu rei e salvar a
pele dos invasores hebreus? Os ensinamentos morais revelam
que alguém que favorece o inimigo, é inimigo também. O que
motivou Raab? Segundo Bottini, “Raab é uma figura bíblica
muito cara ao judaísmo”141; para Dibelius “Raab se tornou uma
heroína para Israel” 142, embora não fosse de seu povo; Perkins
defende que, pelo que ela fez em prol de Israel, para os judeus
Raab “era considerada um modelo de prosélita”143.
Coogan afirma que a batalha pela cidade de Jericó foi
vencida devido à traição de Raab para com seus concidadãos
de dentro da cidade144. Por outro lado, o que seria traição aos
olhos humanos, aqui pode ser considerado fidelidade ao Deus
da vida.
O rabino Bonder, em seu livro A Alma Imoral, exemplifica
transgressões presentes no texto bíblico, tais como a traição
de Abraão a seu pai e sua cultura para estabelecerse numa
terra estrangeira. A transgressão do direito dos primogênitos:
Isaac transgride Esaú; Raquel transgride Lia; e José transgride
Judá145. Essas transgressões são legitimadas no texto bíblico
uma vez que falta a repreensão às mesmas. Nesse contexto, o
traidor é transgressor. Bonder afirma que tradição e traição se
141 G. C. bottini, Lettera di Giacono: nuova versione e comento, Milano 2014, 138.
142 M. dibelius, A commentary on the Epistle of James, Philadelphia 1996, 166.
143 P. perkins, I e II Pietro, Giacomo e Giuda, Torino 2005, 123.
144 Cf. M. D. CooGan, “Josué”, en R. E. brown – J. A. Fitzmyer – R. E. murphy (eds),
Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, Santo André / São
Paulo 2012, 259.
145 Cf. N. bonder, A Alma Imoral, Rio de Janeiro 1998, 18.
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interligam no seu significado mais profundo. “A evolução só é
possível quando existe uma manifestação para ser contestada,
aviltada”146 .
O ser humano é a tensão entre a preservação e a transgressão.
Nesse sentido, Raab ao trair seu povo, vive a tensão: delatar os
espiões que fazem parte do povo temente ao Deus vitorioso e
que estão destinados a viver em Canaã, ou entregálos ao rei
cananeu. A sua transgressão não preserva o status quo cananeu,
ela cria novas possibilidades. Raab havia ouvido falar do favor
de Deus em relação ao seu povo em diversas ocasiões, na
travessia do mar dos Juncos, na ocasião da fuga do Egito, nas
vitórias sobre seus adversários: os reis dos amorreus do outro
lado do Jordão, Seon e Og (Js 2,10).
A transgressão de Raab foi acreditar num Deus que não era
o de seu povo. O salto qualitativo na compreensão de Deus por
parte de Raab garante sua vida, dos seus e muda a geografia
de sua terra. Ao transgredir pela fé, Raab viabiliza o plano de
salvação. Ademais, segundo Wright, a transgressão de Raab
garante a ela uma mudança social: de prostituta marginalizada
em Canaã, ela passa a ser uma habitante no meio de Israel até
os dias de hoje (Js 6,25)147 .
Raab se encontrava em um cenário difícil, teve que agir
rapidamente, encontrou uma solução independentemente
de não poder tomar decisões, na época própria das figuras
masculinas. Ao acolher os servos de Deus, preservou suas vidas
ameaçadas pelos desobedientes. Diante de Deus, a mentira de
146 Cf. ibid., 19.
147 Cf. J. L. wriGht, War, Memory and National Identity in the Hebrew Bible, Cambridge
2020, 108.
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Raab para o soberano cananeu foi um mal menor do que pôr a
vida dos israelitas em risco. Suas ações revelam um coração
inflamado pela fé. Raab nos mostra que para Deus não importa
o passado, visto que fé e ações podem salvar aqueles que estão
em situação de pecado.
Coogan assinala que as tradições tardias se embaraçaram
pela profissão de Raab. À medida que as tradições textuais
foram se desenvolvendo, comentários foram acrescentados
visando reabilitar Raab. Os novos acréscimos intencionavam
esclarecer que os espiões não tiveram relações sexuais com
ela148.
Conclusão
Raab é citada em Josué, Hebreus e Tiago como uma
mulher de fé e boas obras. Nessas duas passagens do Novo
Testamento, ela é lembrada com termos positivos: pela sua fé e
consequente boa ação realizada, consegue a salvação para si e
para os seus. De acordo com os Padres da Igreja, é vista como
figura da Igreja dos gentios. Além disso, ela também aparece
no Novo Testamento em Mt 1,5, sendo apresentada entre os
antepassados de Jesus149.
A confissão de fé de Raab é explicitada de forma indireta
em Js 2,913, pois ela não diz claramente que tem fé no Deus
dos hebreus, mas é possível notar que ela acreditou nos relatos
que ouvira sobre a ação YHWH em favor de seu povo. Sua fé
mobilizou seu coração em favor dos espiões, ela os hospedou
148 Cf. M. D. CooGan, “Josué”, en R. E. brown – J. A. Fitzmyer – R. E. murphy (eds),
Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento, Santo André / São
Paulo 2012, 259.
149 Cf. G. CroCetti, Josué, Juízes e Rute, São Paulo 1985, 53.
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em sua casa e os escondeu do rei de Jericó, arriscando sua
vida para proteger seus irmãos na fé. A fé e ações de Raab
imortalizaram-na: até hoje seu nome ressoa nos ouvidos de
fiéis judeus e cristãos, ela vive e é paradigma de mulher de fé
e de boas obras!
Percebese que Hebreus e Tiago, cada um à sua maneira,
enfatizam a fé acompanhada das obras. O autor da carta aos
Hebreus mostra que Raab não pereceu com os desobedientes
porque teve fé e agiu em favor de Israel. Tiago, por sua vez, faz
uma pergunta retórica cuja resposta só pode ser afirmativa: sim.
Raab foi justificada pelas obras e não somente pela fé.
Raab foi salva pela prática da fé. Através da fé de uma
mulher impura, veio a possibilidade de Israel conquistar a sua
terra. Para Deus, o passado, a etnia, o sexo não importam, mas
sim a conversão. Ela deixou sua vida de pecado e passou a
viver no meio de Israel até os dias de hoje. Sua fé salvou sua
família e restituiu-lhe a dignidade. Deus restaura aqueles que
n’Ele confiam e agem por causa e em causa de Seu nome.
Por fim, os autores sagrados não tiveram preconceito
algum ou receio em indicar nas Sagradas Escrituras, no texto
da Palavra de Deus, que uma prostituta/meretriz (Hb 11,31 e
Tg 2,25) foi e é tida como mulher modelo de fé e de boas obras,
à altura de Abraão, o patriarca e pai na fé para as três grandes
religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo.
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